sábado, 26 de setembro de 2009

Lembranças de um futuro

Lembro-me daquele tempo em que o medo de perder era maior que a dor de vencer. Lembro-me de sons figurados e dissimulados, mutuando qualquer lembrança cumulativa. Lembro-me do gótico, do gélido e da alegria que foi vencida pelo cansaço de só mais um dedo opositor, de só mais uma voz sedutora que indicava qualquer caminho inventivo.
Lembro-me de pontos e vírgulas postos numa graduação famigerada. Lembro-me de alguns corais (tanto dos corais marinhos quanto daqueles unidos em uníssono). Lembro-me até da aliteração de uma poesia solitária, pobre e pesada. Lembro-me de um apontar árduo de espécie simétrica, talvez dos acentos esquecidos e do sorriso apertado, forçado, suscitado de agonia. Lembro-me de tantas esquinas que esperaram só mais um conselho de Pitágoras. Lembrei apenas dos melhores, e entre eles estava Drummond, Clarice e Machado.
E assim, contrário e perdido, eu somente lembrei de ter vivido a sorte de uma língua sem dobras, de uma consciência sem limites, de um viver encharcado de chuva fraca e fina, que insiste em desaguar monossilabicamente nos olhos cansados que enxergam mais que o ontem possa alcançar e mais que o limite possa nascer.

sábado, 5 de setembro de 2009

A Porta Preta - Um pequeno conto

Parte II

Já não fosse feito de sensações traidoras, usurpadoras do coração de Pablo, acontecia também o impasse físico. Nunca entendi como aquele corpo, que um dia sustentou tanta força, pudesse estar impregnado de maldade e rarefazer o instinto benévolo. Talvez duas pessoas convivessem ali, mas este não é o foco da história.
Pablo e sua mãe atravessaram a rua despercebidamente, porém agora com expressões impassíveis, dignas de serenidades descomunais. O asfalto cheirava a chuva, as nuvens cheiravam a chuva e o céu, agora ainda mais coberto de 256 tons diferentes, implorava claridade.
Uma escada pequena e torta indicava o caminho ao hospital; a partir dali o escárnio da pureza fora iniciado. Um ar ora imperioso ora subjetivo, dominava cada gota de sangue que corria nas artérias daquele garoto. E ao chegar ao topo da escada, podia avistar completamente a rua lá embaixo: larga, pura e sólida. A construção estava a frente deles, com pedaçoes de gesso bem moldados, arredondados e pintados de um marrom avermelhado. Não se podia negar que o lugar era antigo, mas também possuía uma beleza minuciosamente detalhada. Entraram por uma porta de madeira talhada em quadrados semelhantes. A mão fria da mãe de Pablo tocou a maçaneta e empurrou a porta devagar, fazendo-a ranger um pouco.
Sim, era um hospital. Muitas pessoas já circulavam por ali, muitas vidas com fisionomias abatidas. Bonito por fora, pesado por dentro; por dentro de Pablo, por dentro do hospital, por dentro de almas quase eternamente ligadas às carnes.
- Acho que este não é o lugar adequado, não me sinto bem aqui. - Disse à mãe, tentando ser paciente.
- Não é este? - Questionou receosamente.
- Não.
- Você quer tentar outro? - O rosto dela queimava de desespero.
- Aham. - Respondeu num tom seco e sério.
A porta do hospital foi aberta mais uma vez e o ranger fora escutado pela última vez. Saíram juntos, de mãos dadas, desceram pela mesma escada e voltaram ao mesmo passeio. Carros velozes passavam e marcavam a pista, era impossível atravessá-la. Alguns ciclistas arriscavam o exercício pelo acostamento.
Um ônibus parou. Não me lembro bem aonde ia, mas notei que os dois entraram e sentaram. A mente desordenada de Pablo traduzia o pensamento de que não importava muito qual caminho estavam seguindo, o seguir por si só era o suficiente, o bastante. Chegaram ao lugar correto assim.